Eu a vi aquele dia,
parecia que estava marcado para acontecer, os meus passos estavam
lentos pela rua e eu olhava para o chão como sempre costumava fazer
ao andar. Os passos das pessoas era apressado, uma em direção a
outra, uma multidão repleta e as pessoas pareciam nem notar que
havia alguém ao seu lado, parecia que cada um estava em seu universo
e eu só conseguia olhar para seus pés. Eu cometi o terrível erro
de olhar para frente, olhar para as pessoas, reparar em como elas
estavam absortas em seu próprio mundo e foi então que eu a vi. O
gorro vermelho foi o que chamou a minha atenção, enquanto todas as
pessoas usavam suas roupas cinzas e pretas, ela usava um casaco
amarelo e um gorro vermelho, o sorriso parecia não sair de seus
lábios, o copo de café, que eu achava que ela odiava, em sua mão
foi até sua boca e ela tirou rapidamente voltando a rir de algo que
a pessoa ao seu lado dizia, não olhei para a pessoa, meus olhos
estavam concentrados naquele sorriso, no sorriso que eu sempre
lembraria e aquilo era uma maldição. Encontrá-la no meio da rua,
naquele dia, só podia ser o destino cuspindo na minha cara. Eu
passei ao seu lado, ela nem ao menos me viu, seus olhos estavam fixos
em outra pessoa, mas eu pude ouvir sua risada nasalada, estranha e
escandalosa que fazia qualquer um rir junto.
Apressei mais meu
passo, meu apartamento era a duas quadras dali e eu precisava
urgentemente chegar até ele, as pessoas pareciam estar todas no meu
caminho naquele momento, parecia que a pressa habitual havia se
perdido e todos tinham drasticamente passado a passear pelas ruas.
Vamos pessoal, sejam bons seres humanos, tenham pressa, corram para
seus afazeres.
Avistei a entrada de
meu apartamento a frente, quando finalmente consegui chegar até ele
a senhora que morava embaixo do meu apartamento saía pela porta e
parou ao me avistar.
- Rafael querido,
você pode consertar uma coisa para mim mais tarde? Não consigo
fazer aquela máquina de lavar funcionar. - ela sorriu doce parar
mim, Dona Ana era uma senhora de meia idade simpática, mas vivia
pedindo para as pessoas consertarem algo em seu apartamento mesmo que
soubesse que a pessoa não tinha a menor habilidade para tal coisa.
- Bom dia Dona Ana,
eu adoraria fazer isso para a senhora, mas acho que devemos chamar um
técnico. - ela me olhou decepcionada e assustada, tinha medo de
qualquer estranho entrando em seu apartamento – não se preocupe,
eu vou ligar para alguém de confiança, um amigo que sempre conserta
coisas em meu apartamento.
- Obrigada querido.
- seu rosto se tranquilizou e ela voltou a sorrir para mim, se
despediu com um aceno e me desejou um bom dia, sorri para aquela
senhora e corri para dentro do meu prédio, o elevador parecia um
daqueles velhos elevadores dos anos 90, tinha uma grade como porta e
os botões pareciam estar todos destruídos, não era um dos melhores
lugares para se morar, mas tinha certo potencial. Como sempre apertei
o último botão e esperei que aquela lata velha subisse, encostei
meu corpo na grade de trás e deixei que minha mente lembrasse dela.
Flashback
-
Rafael, por que você escolheu o apartamento no último andar? - ela
me perguntava entrando no elevador com uma das caixas da minha mudança.
-
Ora Kate, é o melhor andar para se viver, as coberturas não são
sempre as mais caras? - eu sorri e ela me olhou rindo e negando com a
cabeça como se eu fosse um louco só de pensar aquilo.
-
Não nesse prédio, aqui você corre o risco de essa lata velha que
eles chamam de elevador parar de funcionar e você ter que subir os
dez andares pela escada. - eu a olhei entediado e ela não parou de
rir da minha cara, era típico da minha melhor amiga – eu já vou
logo avisando que se esse elevador quebrar eu não subo pelas escadas
nem ferrando.
-
E quem disse que eu te convidei para vir aqui? - ela riu mais alto,
aquela risada engraçada que eu sempre implicava e então mostrou a
caixa em seus braços e eu dei de ombros, era óbvio que Kate viveria
em meu apartamento e era óbvio que ela subiria as escadas para isso
se precisasse.
Fim do Flashback
Eu
entrei em meu apartamento jogando a mochila em qualquer canto, me
joguei no meu sofá, não antes de notar a mancha alaranjada que Kate
havia deixado há cerca de seis meses.
Flashback
-
Kate, Kate, Kate – eu a empurrava de um lado para o outro enquanto
ela tentava inutilmente prestar atenção ao filme que passava na
televisão. A segunda vez a chacoalhei, o conteúdo de seu copo caiu
todo em cima dela e no meu sofá, meu lindo sofá branco, por que eu
comprei um sofá branco? Por que ele tinha um capacete Stormtrooper
como braço do sofá, não havia como recusar aquele sofá em casa. -
Meu sofá! - eu gritei olhando para Kate que ria sem parar, sabendo
que a culpa era toda minha, eu olhei para aquela mancha laranja que
definitivamente não sairia. - Que merda você estava bebendo?
-
Chá de pêssego. - ela falou sem parar de rir, fiz ela me ajudar a
limpar aquela sujeira e ela não parava de rir da minha cara de
desespero, logicamente a mancha não saiu, para minha infelicidade,
passei a tarde inteira falando de como aquilo era culpa de Kate e
como ela teria que me dar um sofá novo e ela apenas ria de mim –
Ah Rafael, para de chorar por um sofá, isso é história para
lembrar.
Fim do Flashback
Kate
sempre fazia isso, transformava tudo em lembranças, ela dizia que se
um dia um de nós fosse para longe ou por um acaso do destino nos
separássemos essas coisas não nos deixariam esquecer da nossa
amizade. E infelizmente eu constatei que ela estava totalmente certa.
Eu não conseguia olhar para nenhuma parte daquele apartamento sem
lembrar dela e sem lembrar que ela havia me abandonado, logicamente a
culpa era minha, como a mancha no sofá, mas eu gostava de pensar que
a culpa era dela como em tudo que acontecia comigo.
Flashback
Eu
andava distraído pelos corredores da faculdade, algumas pessoas
passavam me cumprimentando e eu apenas acenava de volta. Senti um
braço se entrelaçar ao meu e sorri para a garota ao meu lado.
-
Rafael, você não vai acreditar em quem me chamou para sair. - ela
começou seu discurso sorrindo e era nesses momentos que eu fingia
prestar atenção ao que ela dizia, não queria saber de algum cara
que dava em cima da minha amiga, era sempre um babaca que eu, coberto
de motivos, não iria gostar e que iria a magoar. Kate não parou de
falar disso até chegarmos ao pátio da faculdade quando ela me deu a
mão e sentamos em um dos bancos, eu sabia que quando ela segurava a
minha mão era por que ela diria algo que me faria pensar para
sempre, algo que nunca sairia da minha cabeça, ela tinha esse
incrível dom e então eu voltei a prestar atenção ao que ela
dizia. - Sabe, estive pensando, você deveria montar uma banda com os
meninos da faculdade.
-
Kate nós já falamos disso... - eu suspirei angustiado.
-
Eu sei, mas olha só – ela puxou um bloco de anotações da bolsa e
começou a me mostrar nomes de alguns caras da faculdade, os
instrumentos que tocavam e a avaliação dela sobre eles. Eu esperei
ela terminar de listar todos e então ela disse me dando a folha com
os nomes – Olha Rafael, sei que você tem medo, mas se você não
correr atrás nunca vai realizar.
Ela
sorriu, beijou minha bochecha e saiu, era incrível a sua capacidade
de me fazer pensar em como eu era um imbecil e ao mesmo tempo em como
eu deveria fazer algo a respeito da minha vida.
Fim do Flashback
Ouvi
um miado baixo vindo do lado do sofá e peguei Parzival o colocando
em minha barriga, aquele era o gatinho que Kate havia me dado assim
que me mudei para o apartamento, ela gostava dele mais do que eu e
ele dela, mas na falta dela ele não tinha a quem recorrer para
receber seus carinhos diários então servia eu mesmo. Olhei para o
relógio e pude constatar que estava atrasado para a faculdade, eu
não ia de qualquer forma. Enxotei o gato do meu colo e fui até a
geladeira, claro que não tinha nenhuma comida decente naquele lugar,
mas não faltava cerveja e todo o espaço da geladeira estava
preenchido com elas, peguei uma e voltei ao sofá encarando meu
violão ao lado da televisão.
Flashback
-
Rafael meu amigo! - Kate chegou me abraçando de lado, eu estava
sentado no bar e ela se sentou no banco ao meu lado, rindo de alguma
coisa que eu não sabia. Estava visivelmente bêbada, eu não podia
falar muito pois estava quase no mesmo estado. - Você me abandonou.
Fazia
algumas semanas que não nos víamos, alguma briga nossa idiota por
ela estar saindo com Josh ou Jon ou Johny, não faço questão de
saber o nome do imbecil.
-
Não te abandonei, Kate. - ela fez bico e pegou em minha mão fazendo
com que eu olhasse para seu rosto. Ela sorriu ao ver que eu ainda
prestava atenção ao que ela dizia quando segurava minha mão.
-
Ei, lembra quando a gente bebeu tanto no seu aniversário que jogamos
ovos no carro de Verônica? - ela ria ao mencionar aquilo e eu não
pude evitar rir junto. - Mas bem que ela merecia aquilo, ninguém faz
meu amigo de otário.
-
Kate você está bêbada. - anunciei o que ela provavelmente já
sabia e nem ao menos ligava ela continuou me olhando esperando eu
dizer algo sobre Verônica – mas aquela vaca realmente mereceu.
-
Soube que ela está grávida. - ela disse pensativa – você ainda
gosta dela Rafael?
-
Claro que não. Isso faz dois anos Kate. - ela me olhou triste, as
vezes eu realmente não a entendia.
-
Não tem prazo de validade para o amor. - ela falou arrastando a
palavra amor por algum tempo e eu ri da sua tentativa de chamar o
barman depois disso. - Moço, nos dê duas doses de tequila.
-
Tequila? - eu perguntei e ela deu de ombros insistindo com o barman
que finalmente a atendeu e trouxe nossas doses. Bebemos em um gole só
e Kate fez uma cara feia ao colocar o limão na boca.
-
A gente terminou. - ela anunciou assim que tirou o limão da boca e
eu a olhei quase que pedindo desculpa e ela olhou para seu copo
ressentida. - Não era amor. Ele disse que eu não podia amá-lo por
que eu já tinha outro amor na minha vida. - ela olhou para mim
sugestiva e eu me senti culpado, não era a primeira vez que um de
seus namorados me usava como desculpa para terminar com ela.
-
Ele é um idiota – eu falei e ela riu confirmando. A noite se
passou com Kate e eu rindo sobre nossos antigos amores, era como se
nunca tivéssemos brigado. Mais algumas doses de tequila e Kate já
não conseguia formar uma frase sem rir no meio dela.
-
Rafael, todos os meus ex são imbecis – eu concordei com um aceno
de cabeça e ela riu – você é o único cara que eu posso confiar.
Nós
sorrimos um para o outro, éramos os melhores amigos naquele mundo,
ela era a única que eu podia confiar. Mas eu sempre fui bom em
estragar tudo e Kate era quem consertava, mas daquela vez eu fui o
mais estúpido que eu podia ser. Chegamos ao meu apartamento em uma
velocidade que eu nem imaginei que pudéssemos, Kate brincou com
Parzival assim que entrou e eu peguei uma cerveja para nós. Aquele
vestido preto da garota estava no chão em questão de segundos,
aquela era a coisa mais estúpida que fizemos em toda nossa vida.
Fim do Flashback
Eu finalmente peguei o violão, dedilhando aquelas cordas eu pude ver
o quanto eu sentia falta de tocar. Desde que Kate fora embora, no
meio da madrugada daquele dia, sem se despedir eu não havia tocado
no meu violão. Eu não a procurei, ela deixou muitas mensagens na
minha secretária eletrônica e eu não retornava, até que três
semanas depois ela parou de tentar. Fui até a secretária eletrônica
e deixei o violão de lado. Apertei o botão e já devia ser a
milésima vez que eu ouvia aquela mensagem, fazia três meses que eu
a ouvia sem parar, só para me matar um pouco por dentro.
“Você tem uma
mensagem! - a voz escrota da secretária falou e eu esperei pela voz
dela - Oi... - houve alguns segundos de silêncio – é a Kate, não
que você não saiba, - ela riu de si mesma e então sua risada parou
– eu já entendi que você não quer me atender e nem me retornar -
ela suspirou – não vou mais te ligar, Rafael. Essa é minha última
ligação. - houve uma pausa e ela parecia não querer continuar –
espero que você esteja bem e que se levante desse sofá algum dia.
Todo mundo erra. - ela fungou e eu sabia, ela estava chorando – Não
sei por que eu ainda tento, mas acho que é porque nunca terá nada
como eu e você. - ela fungou de novo e meu peito estava apertado –
Eu estou bem – ela riu de novo e eu queria chorar – Olha – mais
uma pausa – só queria te dizer que eu... - um bip soou e a voz
maldita da secretária falou: Fim da mensagem!”